sábado, 13 de outubro de 2007

Porque o Silêncio não Incomoda - Devemos não esquecer e Passar a Palavra


Os massacres que o mundo esqueceu
12.10.2007 - 07h10 Ana Fonseca Pereira in Público

Em 1988, como em 2007, os protestos nasceram da crise económica que a Birmânia atravessava, mas depressa assumiram contornos políticos, com milhares de pessoas nas ruas a exigirem democracia, num país dominado há décadas por um regime totalitário.
Então, como agora, a repressão militar esmagou os opositores, à custa de um banho de sangue, detenções arbitrárias e tortura.
Ao contrário de 2007, em 1988 o mundo demorou dias até conhecer as imagens dos massacres que provocaram três mil mortos.
No final da década de 1980, a Birmânia acumulava décadas de empobrecimento, fruto de uma desastrosa política económica iniciada pelo general Ne Win após o golpe militar de 1962. Intitulada “A Via Birmanesa para o Socialismo”, a política isolacionista do regime nacionalizara toda a economia, permitindo que o maior exportador mundial de arroz ao tempo da independência (1948) registasse agora sérias carências desse cereal.
As principais indústrias do país – a exploração de combustíveis, a extracção de pedras preciosas e madeiras exóticas – estavam à beira da paralisia após anos de desinvestimentos.

Números da sorte

A revolta estalou em Setembro de 1987, quando Ne Win, fazendo uso da tradicional superstição nos números, decidiu manter apenas em circulação as notas de 45 e 90 kyats, as únicas divisíveis por nove, o seu número da sorte.
A megalómana decisão reduziu a nada as poupanças de centenas de milhares de pessoas e os protestos não tardaram, num país onde durante um quarto de século poucos ousaram desafiar o regime de partido único.
As associações de estudantes – proibidas pelo regime, mas dotadas de uma bem organizada rede clandestina – encabeçaram os protestos, mas, durante meses, poucos os acompanharam até que, em Março de 1988, um estudante que participava numa manifestação junto ao Instituto de Tecnologia foi abatido a tiro.
Nos dias que se seguem, a revolta estudantil, a que se juntam outros habitantes de Rangum, aumenta e ouvem-se nas ruas da capital as primeiras reivindicações de democracia.
O regime reage, enviando para as ruas a polícia anti-motim que reprime os protestos com brutalidade e não hesita em abrir fogo contra os manifestantes.
O cenário repete-se em Junho, perante um regime incapaz de silenciar os protestos.
Em finais de Julho, a revista “Aseanweek” garantia que o número de mortos entre os opositores ultrapassava já uma centena, mas da comunidade internacional surgiam apenas tímidos protestos.
Foi, por isso, com surpresa que o país recebeu, no final de Julho, a notícia de que o general Ne Win – o único líder que o país conhecera em 26 anos – se demitira da liderança do Partido do Programa Socialista da Birmânia (BSPP) e que para o seu lugar fora escolhido Sein Lwin, representante da linha mais dura do regime, que agora prometia reformas económicas e a estabilização do país.
Mas o efeito conseguido foi o oposto. Homem obscuro, a opinião pública conhecia o novo líder apenas como o comandante da polícia anti-motim responsável pela repressão de Março e Junho, recordando-o ainda como o chefe companhia que em 1962, poucos dias após o golpe de Estado, matara 22 estudantes que protestavam na Universidade de Rangum.“
Com a morte de alguns, tudo regressou à calma.
Se forem mortos outros dez mil resolvemos o problema de vez”, terá dito Sein Lwin na reunião de emergência do comité central executivo após a repressão de Junho, segundo uma citação da “Aseanweek”.
A frase ficou célebre, como também ficaria a ameaça deixada pelo general Ne Win ao anunciar a sua saída de cena: “Quero que todos no país saibam que, se no futuro houver quaisquer desacatos, o Exército dispara para acertar, não para o ar em aviso”.

8-8-88

A confirmação destas palavras, como recordou recentemente a BBC, demoraria poucos dias a ser feita. Ignorando os avisos do regime e a imposição da lei marcial em Rangum, milhares de estudantes, acompanhados por monges budistas nos seus trajes tradicionais, saíram à rua nos primeiros dias de Agosto para contestar a nomeação de Sein Lwin e exigir uma mudança de regime.
Outras cidades juntaram-se aos protestos, entre elas Mandalay, a antiga capital imperial e segunda maior metrópole do país, e não tardou até que o regime respondesse com o uso da força, provocando as primeiras vítimas.
A 8 de Agosto (8-8-88 como ficaria conhecido entre os opositores) as associações de estudantes convocam uma greve geral em Rangum, fazendo-a coincidir com um número associado à boa sorte por muitos birmaneses.
Os relatos recolhidos pela imprensa da altura referem que a paralisação não teve o efeito esperado, mas durante o dia milhares de pessoas – números não oficiais falam em cinco mil – concentraram-se no centro da cidade, apesar da forte presença policial.
A atmosfera é de festa, com cânticos budistas a rivalizarem com canções de protesto, numa multidão onde se destaca o açafrão das vestes dos monges budistas e as bandeiras com pavão dentro de um círculo vermelho – o símbolo dos nacionalistas que lutaram pela independência do país e que se transformaria no porta-estandarte das manifestações estudantis.
Tom White, adido cultural da embaixada britânica à data, lembrou à BBC a euforia dos que, após décadas de repressão, cantavam nas ruas: “Queremos democracia, é isso que queremos”.
Ao contrário do que o regime esperava, os manifestantes não desmobilizaram com o cair da noite e, de madrugada, a tensão crescente era interrompida pelas primeiras rajadas de tiros. Testemunhas afirmam que os militares, chamados a defender as ruas, abriram fogo contra a multidão indefesa.
Na manhã seguinte, o balanço oficial dava conta de cinco mortos, 55 feridos e 1451 detidos em Rangum, a que se juntavam dezenas de vítimas noutras cidades do país, mas os números exactos nunca foram conhecidos.
As organizações humanitárias calculam que mais de mil opositores foram abatidos durante os protestos ou mortos na prisão.

Suu Kyi, o novo rosto da oposição

A violência não calou os protestos. A notícia de que manifestantes indefesos, incluindo monges, tinham sido mortos a tiro gerou uma onda de indignação num país maioritariamente budista. Nos dias que se seguiram, multiplicaram-se os confrontos violentos entre militares e civis.
A 12 de Agosto, apenas 18 dias depois de assumir as rédeas da Birmânia, Sein Lwin – apelidado nas ruas de “Carniceiro” e “Hitler do Camboja” – é forçado a demitir-se, sendo substituído pelo então procurador-geral Maung-Maung, um moderado, considerado próximo do antigo ditador. Ao tomar posse, o novo líder prometeu investigar os incidentes dos dias anteriores e anunciou o fim da lei marcial.
A oposição, no entanto, manteve os protestos, organizando manifestações a que acorriam centenas de milhares de pessoas e, no final de Agosto, a cúpula do regime acabaria por ceder, anunciando a realização para breve de eleições multipartidárias, sem no entanto se comprometer com uma data.
No início de Setembro, a edição asiática da revista “Time” dava conta do ânimo instalado entre os movimentos pró-democracia, mas também da anarquia que crescia nas ruas da capital.
No pensamento de todos, a possibilidade de uma mudança de regime, tal como acontecera dois anos antes nas Filipinas, com a queda em desgraça do então ditador Ferdinand Marcos.

Aung San Suu Kyi fala ao povo

Dias antes, Aung San Suu Kyi, filha do falecido herói da independência Aung San, falara à multidão reunida no pagode de Shwedagon (as testemunhas falavam em meio milhão de apoiantes) e num discurso emotivo exigiu a demissão de Maung-Maung e a criação de um governo interino para organizar as eleições livres.
Recém regressada à Birmânia para tratar da mãe que se encontrava doente, Suu Kyi, espontânea e carismática, rapidamente se torna o rosto da oposição democrática, onde pontuam outros filhos de heróis da independência como os dirigentes estudantis Ming Ko Naing e Cho Cho Kyaw Nyein.
Aos apoiantes, Suu Kyi pede contenção e avisa para os riscos de uma confrontação com o Exército, alegando que “a democracia só pode ser obtida de forma pacífica e unificadora”.
Mas nas ruas, os saques multiplicam-se, há relatos de companhias inteiras que se juntam à oposição, milícias populares patrulham as ruas e crescem os rumores de que os generais leais ao antigo ditador preparam um golpe.
Na edição de 9 de Setembro, a “Asianweek” cita as palavras proféticas de Michael Aung, um historiador americano de origem birmanesa: “Se a desordem continuar, será uma desculpa perfeita para os militares intervirem, tal como fizeram em 1962”.

Repressão sangrenta

Na segunda semana de Setembro, alegando que “o Governo estava à beira da auto-dissolução”, uma junta militar liderada pelo então ministro da Defesa Saw Maung assume o poder, colocando em prisão domiciliária centenas de dirigentes cuja lealdade aos princípios do regime é posta em causa.
A 18 de Setembro – o mesmo dia em que começaram os protestos de 2007 – uma multidão de manifestantes pró-democracia concentrada junto à embaixada americana é baleada por militares instalados em telhados na vizinhança, relata a correspondente da “Newsweek”.
Milícias ligadas à oposição reagem, atacando com setas postos militares noutros pontos da capital, dando à junta militar um motivo para desencadear uma campanha de repressão preparada com antecedência. “Os soldados destroem as barricadas, montam postos de controlo e levam a cabo buscas casa a casa à procura de dirigentes da oposição”, relata a revista norte-americana.
Milhares de opositores são levados para as prisões do regime, enquanto nas ruas os militares abrem fogo indiscriminadamente contra civis.
Testemunhas garantem que camiões carregados de corpos chegam diariamente ao crematório de Rangum. As estimativas apontam, no final da primeira semana de repressão, para um milhar de mortos.
A Human Rights Watch admitia num comunicado recente, que só na repressão de Setembro três mil pessoas tenham perdido a vida, elevando para mais de dez mil o número de mortos registados desde Março.
Calcula-se que outros tantos opositores tenham procurado refúgio na selva, muitos deles conseguindo fugir para a vizinha Tailândia, ponto de partida para um exílio em países ocidentais.

O mundo reage

Após meses de indiferença – para o que terá contribuído a escassez de imagens vindas do país – os países ocidentais reagem. Washington exige o fim da repressão e anuncia a suspensão do programa de ajuda humanitária à Birmânia;
A União Europeia decreta um embargo à venda de armas – um exemplo que seria seguido depois por várias outras organizações e países.
Na década seguinte, outras sanções seriam aprovadas, sempre ao ritmo das notícias de violência que chegavam do país: em 1990, após semanas de boicotes em Mandalay, centenas de monges são detidos e dezenas deles torturados; seis anos depois protestos pacíficos de estudantes são esmagados pela força.
Ansiosa por conseguir legitimidade internacional, a junta anuncia no início de 1989 a realização de eleições multipartidárias para o ano seguinte.
Apesar das limitações à actividade da oposição – a lei marcial proibia ajuntamentos com mais de cinco pessoas – a recém-formada Liga Nacional para a Democracia (NLD) obtém o apoio esmagador da população, conquistando 392 dos 485 lugares do parlamento, apesar da sua líder, Aung San Suu Kyi se encontrar já em prisão preventiva.
Os militares recusam-se, no entanto, a reconhecer os resultados e optam por deter a maioria dos eleitos. Suu Kyi, à semelhança da maioria dos dirigentes estudantis, passará a maior parte dos 19 anos seguintes privada de liberdade.
Em 1991, no rescaldo da repressão brutal, o mundo reconhece o novo movimento democrático birmanês, atribuindo à sua líder o Prémio Nobel da Paz e o Prémio Sakharov dos Direitos Humanos.

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